Recordo nitidamente como
um cunho de contraste, com o sol cúmplice a abençoar aquele momento. A
caminhada era já eterna, mas nenhum de nós se parecia incomodar, o motivo que
nos fizera andar, estava agora em segundo plano. O meu olhar adivinhava nela a
eterna questão: porquê? Porque é que alguém me fazia andar sem destino? Porque
é que apesar do cansaço, cada quilómetro parecia o primeiro, pois tal era o
prazer de sua companhia?
Retivera-a
intuitivamente. Havia localizado de soslaio a nossa oportuna paragem.,
“ESTRELICIA” a ave-do-paraíso, – pensava, enquanto sugeria uma pausa na nossa
viagem.
Á entrada e junto ao
balcão, um casal saboreava em conversa o seu café, a sala naturalmente
iluminada, projectava os espelhos decorativos como para marcar a alma dos
apaixonados ali já vividos, tal quadro propiciava vontade e sem mais, nossos
lábios se tocaram, vezes sem conta, lubrificando os nossos desejos.
- Boa tarde, o k deseja?
– Perguntou a empregada fitando-a exclusivamente.
- Água, para me matar...o
desejo. - Respondeu ela ironicamente.
Fascinante,
oportuno, mas sobretudo inteligente, pois há muito que nos sentíamos observados
de um jeito reprobatório.
Deixáramos
a estadia em resposta à recusa da insistência dos nossos instintos amorosos.
Extasiados pelo humor,
repetíamos com ênfase cada palavra pejorativa contra nós apontada, e riamos sem
dó.
Agora, aquela mulher representava a
eloquência quando falava, a inteligência quando em silêncio ouvia atentamente,
o seu vasto conhecimento cultural despertara a minha atenção e me deixara
rendido ao seu charme.
E um simples momento de duas pessoas em marcha
se transformou, como por magia, no nosso momento, na nossa caminhada.
São as coisas simples as
mais difíceis de explicar, as mais nobres, as mais ricas. É a simplicidade que
inspira o intelecto.
Aproveitávamos todos os momentos para trocar
beijos e carícias mas sobretudo olhares, como que a procura da resposta para
aquela encruzilhada de emoções e ausência de controlo que nos ludibriava a
consciência e nos fazia sentir como eternos namorados adolescentes, quando o
mundo parece ser povoado apenas por dois seres.
Finalmente tínhamos
chegado, momentos após alguém se aproximava de nós dizendo.
- Está pronto. A próxima
revisão está marcada para os 30000 kms.
Entramos
no veiculo e olhando para os seus olhos adivinhei o seu pensamento,
Havíamos voltado a nossa
vida mundana, onde as responsabilidades de adulto se sobrepõem aos nossos
escassos momentos, não permitindo um verdadeiro equilíbrio emocional.
E assim, o momento
tinha-se esvanecido com os raios de sol, que
seguiam o ocaso, alertando para o fim
da nossa parca epopeia.
*****
Despertei mais tarde do que
habitualmente, como se tivesse sonhado e o prazer do momento resulta-se apenas
de uma qualquer folia do pensamento.
Afinal, havia despertado com som
estridente do móvel e do outro lado uma voz rouca e enternecida indagava.
-
Olá,
acordei-te?
-
Nã
– respondi como um bom mestre.
-
Será
que podes repetir todo o meu sonho?
-
Quem
és? Repliquei provocante.
-
Sou
aquela que me fizeste esquecer que tenho uma filha adolescente que precisa de
mim todos os dias, um teenager de 10 anos que me pergunta o que tenho, três
gatos dois cães e... um homem que tenho a certeza que é meu.
-
Não
dês nada como garantido na vida, tudo que possuímos não nos pertence, vivemos
apenas o privilégio de “poder gozar o bem” – pareceu-me demasiado filosófico
para o momento apesar de tudo continuei.
A única certeza que tens
é o nascimento dos teus dois filhos e como bem sabes no dia do amanha é bem
possível que o nosso presente já nem exista.
-
Ficarás
na minha vida para todo o sempre – respondeu convicta reflectindo os seus
amadurecidos trinta anos.
Estou já perto de onde
vives neste momento, estás pronto para sair?
Fiquei siderado, mas na verdade já
esperava dela tal atitude, a química era agora indesmentível.
Estás condenado a viver eternamente
com a mesma mulher. - Pensava, enquanto nossos olhares intensos seguiam o mesmo
desejo.
Seu corpo pressionava o meu,
fundindo-o num só, estava dentro dela com tal intensidade que parecia que
nenhum dos dois existia e era-mos agora apenas um pensamento, uma visão da
verdade sobre o mundo, o momento sublime por todos nós desejado.
*****
A noite já ida, deixara espreitar os
primeiros raios de sol anunciando o nascer da aurora, adormecera-mos naquele
imenso vão de areia.
O néctar de Baco teimava em residir
em nossos lábios fruto do luxurioso jantar da véspera. O suor dos corpos
testemunhando a nossa algazarra de amor, confundia os odores, deixando no ar um
leve toque agridoce e madeiras exóticas.
O brilho do seu olhar letárgico e
suas suaves mãos desenhavam os contornos da minha face e fazia-me adivinhar o
seu mistério. Onde estavas?
- Eternamente a tua procura, respondi
em voz firme mas terna.
- Ficaremos juntos para sempre, dizia
ela convicta.
Desejava apenas viver
aquele momento intensamente, pois sabia que a nossa
fase de adolescentes á muito que
havia acabado e era já tarde para acreditar em promessas de amor. Voltáramos a
adormecer, agora já com a presença do sol radioso e do som das gaivotas que
pareciam anunciar o nosso enlace, ao mundo.
*****
Aquele momento fizera-nos esquecer as
nossas responsabilidades mas o portador das boas e más notícias
encarregar-se-ia de nos lembrar. E fizera-o com tal fúria que estremecemos com
tal surpresa.
-
Do
outro lado, alguém perguntava desgostosa.
-
Mãe,
por acaso não te esqueces de nós?
-
Que
horas são? - Perguntou-me em surdina.
-
Faltam
sete para as dez. – Respondi.
Entretanto a chamada caíra.
-
Merda!
Tenho que levar os meus filhos á escola.
Era já seguro que aquela mulher
passara a barreira racional, fruto do caleidoscópio de amor e isso despertava
em mim um sorriso inocente.
- Tem calma, já não
chegas a tempo, com certeza os teus filhos estão em casa e em segurança neste
momento. - Respondi, procurando ordenar os nossos pensamentos.
Discara o número sem olhar.
- Sim, filha desculpa!
Deduzo que não foram para escola?
- E deduzes bem?
Respondeu a filha com ironia e em jeito de provocação.
- Estarei em casa dentro
de 15 minutos, não saias, pois quero falar contigo a com o teu irmão,
entretanto, vai preparando a mesa para quatro pessoas.
Levantamo-nos em
simultâneo e recolhemos os poucos objectos que trouxera-mos, contudo a toalha
que protegera nossos corpos ficara intencionalmente esquecida, como que marcando
o local que havíamos escolhido para amar.
*****
Esta taglatelle
está magnífica. - Dizia
Ao meu lado uma jovem adolescente e bem-parecida,
avaliava todos os meus movimentos na esperança de poder apontar um qualquer
defeito no futuro. Típico de adolescente.
Por tempos, reinou o silêncio naquela
mesa e dei por mim a pensar como tudo
tinha acontecido tão depressa,
afinal, havíamos cruzado os nossos olhares há poucos dias.
-
Queres
repetir? Perguntou ela
-
Não,
Obrigado.
Na verdade o prato era um
pouco estranho para mim nunca fora grande apreciador de comida vegetariana e a
verdade é que não me via a converter-me tão cedo, como estava enganado.
-
De
certeza que não queres repetir, pouco comes-te?
-
Ainda
estou em compensação com o nosso jantar de ontem.
Ao lado percebia
nitidamente o desconforto da jovem por toda a intimidade e não se contendo
deixou escapar ironicamente:
-
Afinal
esqueceste-te do fiambre, que compras-te ontem!
-
Como?!!
– Perguntou, denotando estar completamente alheia á conversa da filha.
-
O
fiambre.!! Ontem não sais-te para comprar fiambre?
-
Há
pois... o fiambre, fica descansada que a mãe compra-te um porco inteiro para
não mais teres falta. – Disse ironicamente, despoletando na mesa em uníssono
uma forte gargalhada.
Á parte da sua indubitável
beleza, apreciava aquela atitude francamente positiva e o seu sentido de humor.
Afinal, fora tal comportamento que havia suscitado o meu interesse por ela bem
recentemente.
O ambiente sereno e
tranquilo da sala, escondia o pensamento da jovem, mas facilmente se adivinhava
com um pouco mais de atenção.
A minha presença no
futuro iria sem dúvida, comprometer a atenção que a mãe lhe dedicara e isso
deixava-a frágil, temente, incapaz de resolver seus problemas. Adivinhei
naquele momento o início de uma quezília nada agradável para ambos. Teria como
beligerante uma adolescente, filha da mulher que amava.
Sentada
sobre as pernas cruzadas impelindo os joelhos contra si com as mãos, olhava-me
intensamente encenando um semblante carente e infeliz, como que pedisse para
ser acolhida nos meus braços.
Indiferente
a atitude da filha, que resolvera marcar a sua presença na sala, levantei-me da
cadeira de vime trabalhado, peguei em sua não e disse:
- Estou
com sede e apetece-me apanhar um pouco de sol, também?
- Os
seus desejos são ordens – exclamou em jeito teatral fazendo um vénia
subordinada, enquanto se levantava.
Sua
atitude fez-me questionar se notara a insegurança da filha e toda a situação
ali vivida, pois tal era a felicidade permanente evidenciada em seu rosto.
*****
A penumbra da noite, definia em pleno
o breve momento sombrio, posicionara o guardar sol esquecido avivando a
escuridão para que sentisse o meu desconforto.
-
Bem
sei que vamos ter problemas com a minha filha.
-
Estava
a pensar como resolve-los, mas conto contigo. - Respondi anuindo á sua
observação.
-
Não
te preocupes, ela nunca aceitou o meu divórcio. Bem sei que vai ser difícil, de
todo o modo é sempre ultrapassável e para isso tens todo o meu apoio.
-
Brindamos
ao nosso amor ou talvez a nossa vitória. Tinha agora uma influente aliada para
a minha batalha.
-
*****
-
A
sala escura e silenciosa, preservava a intimidade dos presentes mas o braço em
mogno industrial dividia os lugares, impedindo o contacto do calor dos nossos
corpos.
-
O
ecran projectava a vida de alguém que
vivia com angústia o sofrimento de entender o amor sem limites algo tipo
mastroianni, ou truffaut.
-
Assim,
ficamos impedidos de lambuzar os nossos sentimentos, mas vivendo em pormenor
aquele relato cinematográfico, como se o destino nos quisesse impor a percepção
do lado complexo da vida.
O relógio marcava dez
para as três, á nossa frente a multidão evadia a sala em ritmo pausado e
ordeiro fruto talvez de o acumular de horas sem repouso do dia agora findo. Havíamos
combinado ficar para o fim como para marcar a nossa diferença daquela multidão,
para nós seria sempre o início de mais um dia e nunca o fim da noite.
Havia posicionado o banco
de forma a criar o maior espaço possível entre mim o volante permitindo o apoio
da sua cabeça em meu ombro direito e assim ficasse o mais confortável possível.
A estrada mal iluminada e
deserta evidenciava a hora em pleno.
Decidíramos passar a
noite num motel por mim sugerido. O portão semi-encerrado e a fachada plantada em granito industrial
identificava um edifício reservado e
acolhedor.
O guichet encastrado no
muro lateral, escondia uma funcionária discreta
-
que num acto mecânico apenas deixou escapar:
-
Bilhetes
de entidade, por favor. Quanto tempo ficam?
-
Pretendemos
apenas passar o resto da noite – respondi, adivinhando entre dentes um sorriso
malicioso como que confirmando uma total empatia pelo momento.
-
Não
é nada de se perder, observei em jeito de provocação enquanto estacionávamos a
viatura.
-
O quarto, embora espaçoso, comportava apenas uma enorme
cama duas mesinhas um pequeno sofá e ao fundo, um móvel de estatura média que
servia em simultâneo de bar e aparador.
-
-
Temos que nos levantar a tempo de levar as minhas crias à escola – observou ela
com seu olhar penetrante e um sorriso malicioso.